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O cuidado da criação

Desde há alguns anos, é celebrado no dia 1 de setembro o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação e desse modo se inicia o “Tempo da Criação”, que decorre até ao dia 4 de outubro (dia de São Francisco de Assis).

O cuidado da Criação, na perspetiva do Papa Francisco, parte de uma dimensão teológica e ética que serve de fundamento e motivação para a ação. Essa dimensão é aprofundada na sua mensagem para a celebração deste ano (acessível em www.vatican.va).

A mensagem contém uma reflexão sobre o sentido do poder humano em geral (quando a tecnologia o faz crescer enormemente) e em especial no que respeita à natureza. O Papa propõe uma conversão de estilos de vida. «Essa conversão consiste em passar da arrogância de quem quer dominar os outros e a natureza – reduzida a um mero objeto manipulável – à humildade de quem cuida dos outros e da Criação. “Um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo” (Laudate Deum, 73), porque o pecado de Adão destruiu as relações fundamentais da vida do homem: a relação com Deus, consigo mesmo, com os outros seres humanos, e a relação com o cosmos. Todas estas relações devem ser, sinergicamente, restauradas, salvas, “corrigidas”. Não pode faltar nenhuma. Se faltar uma, falha tudo».

Já na encíclica Laudato Sí (n. 75) tinha afirmado de forma lapidar: «A melhor maneira de colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua pretensão de ser dominador absoluto da Terra é voltar a propor a figura de um Pai criador e único dono do mundo; caso contrário, o ser humano tenderá sempre a querer impor à realidade as suas próprias leis e interesses».

Não se trata de divinizar a natureza, como se fosse intocável, de ignorar a especificidade do ser humano (criado “à imagem e semelhança de Deus”) ou de negar os benefícios da tecnologia e do progresso. Trata-se de reconhecer na Criação uma dádiva que é reflexo da sabedoria, da beleza e do amor de Deus; de cuidar dessa dádiva e desenvolvê-la, sem a destruir. «A interpretação correta do conceito de ser humano como senhor do universo é entendê-lo no sentido de administrador responsável» (Laudato Si´, n. 116).

Destas verdades decorre um apelo à vivência de virtudes como a gratidão, a gratuidade, a sobriedade e a humildade. «Não é fácil desenvolver esta humildade sadia e uma sobriedade feliz, se nos tornamos autónomos, se excluímos Deus da nossa vida fazendo o nosso eu ocupar o seu lugar, se pensamos ser a nossa subjetividade que determina o que é bem e o que é mal» (Laudato Si´, n. 224).

A consciência desses fundamentos do cuidado da criação e a vivência dessas virtudes traduz-se em comportamentos muito concretos a que vem aludindo a rubrica “Pegada Zero” da nossa revista e de que também dá exemplos a encíclica Laudato Si´ (n. 211): «Se uma pessoa habitualmente se resguarda um pouco mais em vez de ligar o aquecimento, embora as suas economias lhe permitam consumir e gastar mais, isso supõe que adquiriu convicções e modos de sentir favoráveis ao cuidado do ambiente. (…) A educação na responsabilidade ambiental pode incentivar vários comportamentos, que têm incidência direta e importante no cuidado do meio ambiente, tais como evitar o uso de plástico e papel, reduzir o consumo de água, diferenciar o lixo, cozinhar apenas aquilo que razoavelmente se poderá comer, tratar com desvelo os outros seres vivos, servir-se dos transportes públicos ou partilhar o mesmo veículo com várias pessoas, plantar árvores, apagar as luzes desnecessárias (…) Voltar – com base em motivações profundas – a utilizar algo, em vez de o desperdiçar rapidamente, pode ser um ato de amor que exprime a nossa dignidade».

> Artigo publicado no editorial da Revista Cidade Nova  de agosto/setembro de 2024