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Paz na Terra Santa

Quando há algum tempo participei num programa de rádio onde dialogam, habitualmente em grande harmonia, um católico, um hebreu e um muçulmano, o tema do diálogo centrou-se no conflito entre o governo de Israel e o Hamas. Essa habitual harmonia desapareceu quando esses participantes hebreu e muçulmano discutiram acaloradamente a respeito desse conflito.

Eu próprio fui, nessa altura, questionado pela moderadora do debate: e a religião no meio deste conflito?; trata-se de um conflito religioso?; é a religião um fator que o agrava ou que o atenua?

Na minha resposta, quis salientar duas ideias. Antes de mais, a de que não se trata de um conflito religioso, mas antes de um conflito político: nem todos os palestinianos se identificam com o Hamas, nem todos os palestinianos são muçulmanos, nem todos os judeus se identificam com as políticas do governo de Israel.

Depois, a de que, neste como noutros casos, tomar partido é perigoso, pois leva a ver a realidade de uma perspetiva que ignora a perspetiva do outro lado, também ela a merecer consideração. Neste caso, não podem deixar de ser condenadas, com veemência e sem atenuantes, nem as ações terroristas do Hamas, nem a reação absolutamente desproporcionada do governo de Israel. Tal como não pode ser ignorada a necessidade de contruir uma paz duradoura, a qual só será alcançada com o reconhecimento dos direitos de ambos os povos, o israelita e o palestiniano (porque a paz é fruto da justiça).

Mas também não podemos ignorar que as religiões judaica e muçulmana têm um papel decisivo na formação da identidade dos povos israelita e palestiniano. 

Vem a propósito relembrar a tese que o rabino Jonathan Sachs expõe no seu livro Not in God´s Name (traduzido em português pela editora Desassossego, em 2021). São deste livro estas palavras: 

«Com muita frequência na história da religião, muitas pessoas mataram em nome do Deus da vida, combateram guerras em nome do Deus da paz, odiaram em nome do Deus do amor e praticaram a crueldade em nome do Deus da compaixão. Quando isto sucede, Deus fala, por vezes com uma voz calma e fraca, quase inaudível, sob o clamor dos que pretendem falar em seu nome. O que diz nessas ocasiões é: Não em meu nome

Jonathan Sachs não ignora que, com frequência, se procura legitimar religiosamente o ódio e a violência. Isso sucede não por causa da religião, mas por causa da natureza humana, capaz do melhor e do pior. E sucede porque a religião é a força mais poderosa para criar e manter a identidade e coesão de um grupo, a confiança entre desconhecidos. O problema surge quando a identidade e coesão de um grupo se constrói contra outro grupo. E também quando uma visão dualista faz passar a fronteira entre o bem e o mal no limite que divide um grupo do outro, e não no interior de cada pessoa.

Para este rabino, o desafio não é, então, o de suprimir ou viver com menos intensidade a religião, mas o de a viver com mais autenticidade. Porque nas religiões monoteístas que se reconhecem na fé de Abraão encontra-se o antídoto radical ao ódio e à violência. As religiões politeístas serviam de justificação do poder hierárquico político e social (o faraó, o imperador ou o rei eram, de vários modos, equiparados a Deus). A novidade da Bíblia hebraica (o Antigo Testamento, para os cristãos) está na valorização de qualquer pessoa como «imagem e semelhança de Deus», de um Deus que intervém na história para libertar os que não têm poder, em defesa dos mais pobres, fracos e vulneráveis. 

Também já tenho ouvido dizer que nunca houve paz nesta região precisamente porque muitos a consideram Terra Santa, não como um território qualquer. Eu continuarei a designá-la assim porque foi nela que nasceu e viveu o Príncipe da Paz. E, por isso, não podemos desistir de fazer tudo o que está ao nosso alcance para que nela reine um dia a Paz.   

> Artigo publicado no editorial da Revista Cidade Nova  de fevereiro de 2024