Evangelho e democracia
- Pedro Vaz Patto
- 20 Abril, 2024
- 0 ponto de vista de Cidade Nova
- Opinião
Em tempo de comemoração dos 50 anos da revolução de 25 de abril, penso dever concluir que o maior legado desta é o da consolidação do Estado de Direito Democrático. Uma consolidação que esteve ameaçada nos primeiros tempos, mas que se foi fortalecendo progressivamente. É verdade que há fenómenos que nos desiludem, como os níveis de abstenção eleitoral: ainda que tenham descido nas últimas eleições legislativas, o que muitos sublinharam com júbilo, estão ainda muito acima do que se verificou nas primeiras eleições, para a Assembleia Constituinte, em que a participação superou os noventa por cento. Também nos desilude a prática de crimes no exercício de funções políticas, como a corrupção, mas são precisamente as regras próprias de um Estado de Direito, a separação de poderes e a independência do poder judicial, que, melhor do que quaisquer outras, permitem denunciar e punir tais crimes. Mesmo assim, podemos dizer que vivemos hoje numa democracia estável e esse é, sem dúvida, um facto digno de comemoração.
É uma efeméride que torna particularmente oportuna a reflexão sobre os fundamentos éticos da democracia. Esta não se reduz a um conjunto de regras formais que assegurem uma qualquer decisão tomada pela maioria. Não se baseia no relativismo. Afirmou São João Paulo II na encíclica Centesimus Annus (n. 46): «Uma autêntica democracia só é possível num Estado de direito e sobre a base de uma reta conceção da pessoa humana. (…) Hoje tende-se a afirmar que o agnosticismo e o relativismo cético constituem a filosofia e o comportamento fundamental mais idóneos às formas políticas democráticas, e que todos os que estão convencidos que conhecem a verdade e firmemente aderem a ela não são dignos de confiança do ponto de vista democrático, porque não aceitam que a verdade seja determinada pela maioria ou seja variável segundo os diversos equilíbrios políticos. A este propósito, é necessário notar que, se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a ação política, então as ideias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder. Uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a história demonstra.»
A propósito dos valores em que deve basear-se a democracia, é particularmente luminoso um pequeno livro do filósofo francês Jacques Maritain, escrito pouco antes do fim da Segunda Guerra Mundial, sobre Cristianismo e Democracia (há uma tradução castelhana das Ediciones Palabra, de 2001). Ele aí afirma que a democracia, ainda que por intermédio de quem disso não tinha plena consciência, «surgiu na história humana como manifestação temporal da inspiração evangélica». Assim foi porque o cristianismo anunciou aos povos a unidade do género humano, a igualdade da natureza de todos as pessoas, filhas do mesmo Deus e reunidas pelo mesmo Cristo, a dignidade de cada alma criada à imagem e semelhança de Deus, a dignidade do trabalho e dos pobres, a inviolabilidade das consciências, a autoridade como serviço, a lei do amor fraterno que se estende a todos, para além dos diferentes grupos sociais, classes, raças, nações e até aos inimigos.
Estas verdades, se vividas com autenticidade, ajudam, mais que quaisquer outras ideias, a consolidar uma sociedade verdadeiramente democrática e assente na dignidade da pessoa humana. Relembrar isto parece-me a melhor forma de comemorar os 50 anos do 25 de abril.
> Artigo publicado no editorial da Revista Cidade Nova de abril de 2024
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