O ser humano no lugar de Deus?
- Pedro Vaz Patto
- 14 Novembro, 2023
- 0 ponto de vista de Cidade Nova
- Opinião
Na exortação apostólica Laudate Deum o Papa Francisco, a pretexto do oitavo aniversário da publicação da sua encíclica Laudato Sì, sobre o cuidado da “casa comum”, faz um balanço da evolução entretanto ocorrida no que ao combate às alterações climáticas diz respeito, alertando de forma vigorosa para as consequências da inação dos governos neste campo. Reproduz as conclusões da maioria dos cientistas sobre esta realidade e sobre a origem humana (“antrópica”) das suas causas. Responde às teses de quem nega ou relativiza a dimensão do problema, salientando que, ao contrário do que sucedeu noutras eras, o aquecimento a que assistimos não tem decorrido ao ritmo dos séculos ou milénios, mas ao ritmo de uma mesma geração. Analisa os progressos, fracassos e desilusões das várias conferências internacionais sobre esta questão e as expetativas a respeito da próxima, que se realizará no Dubai.
Poderemos dizer que estas afirmações do Papa Francisco não são propriamente uma novidade e que ele se limita a reproduzir (com a sua particular autoridade moral, é certo) aquilo que já dizem os especialistas, o secretário-geral das Nações Unidas e as organizações dedicadas a esta causa. Não será propriamente aqui que reside o contributo específico e próprio da missão do Papa. Parece-me que esse contributo específico, aquilo que responsáveis e agentes políticos não dirão, reside no que se afirma sobretudo no capítulo final da Laudate Deum sobre as motivações espirituais do cuidado da “casa comum” e do combate às alterações climáticas.
Penso que é de salientar, a este respeito, a afirmação com que termina esta exortação apostólica: «Laudate Deum (Louvai a Deus) é o título desta carta, porque um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo».
Nesta linha, já a encíclica Laudato Sì afirmara (n.º 224): «O desaparecimento da humildade, num ser humano excessivamente entusiasmado com a possibilidade de dominar tudo sem limite algum, só pode acabar por prejudicar a sociedade e o meio ambiente. Não é fácil desenvolver esta humildade sadia e uma sobriedade feliz, se nos tornamos autónomos, se excluímos Deus da nossa vida fazendo o nosso eu ocupar o seu lugar, se pensamos ser a nossa subjetividade que determina o que é bem e o que é mal».
Expressão desta mentalidade e postura é aquilo a que o Papa Francisco designa como “paradigma tecnocrático”, isto é, a ideia de que não há limites para a utilização da técnica ao serviço da ambição do ser humano: «Tudo o que existe deixa de ser uma dádiva que se deve apreciar, valorizar e cuidar, para se tornar um escravo, uma vítima de todo e qualquer capricho da mente humana e das suas capacidades» (LD, n.º 22).
A esta mentalidade, há que substituir outra, que vê na criação uma dádiva e um sinal da bondade e beleza de Deus («Deus, vendo a sua obra, considerou-a muito boa» – Gen 1. 31). Uma dádiva a proteger e também a usufruir e desenvolver (o progresso tecnológico não é, em si, negativo), mas sem destruir.
O Papa Francisco reconhece que o combate às alterações climáticas não depende fundamentalmente dos comportamentos individuais, depende de grandes decisões da política nacional e internacional (LD, n.º 69). Mas afirma também que «não há mudanças duradouras sem mudanças culturais, sem uma maturação do modo de viver e das convicções da sociedade; não há mudanças culturais sem mudança nas pessoas» (LD, n.º 70).
Para estas mudanças, contribuem decisivamente as motivações que brotam da fé, porque «a fé autêntica não só dá força ao coração humano, mas transforma a vida inteira, transfigura os objetivos pessoais, ilumina a relação com os outros e os laços com toda a criação» (LD, n.º 61).
> Artigo publicado no editorial da Revista Cidade Nova de novembro de 2023
Artigos do editorial da revista
- Desafios do mediterrâneo e de Portugal
- Melhorar a União Europeia
- Evangelho e democracia
- Polarização e diálogo
- Paz na Terra Santa
- Oitenta anos depois
- Um caminho que continua
- O ser humano no lugar de Deus?
- Uma obra-prima única e original
- Igreja Una
- Revitalização
- Quem envelhece não se aproxima do fim
- Oportunidades e perigos
- O retorno da JMJ
- Morte e ressurreição
- O legado de Bento XVI
- Um ano pela juventude
- Um Deus que se fez menino
- Uma nova “Guerra Fria”?
- A vida tem valor até ao fim
- Nenhum povo esquecido
- A escuta é uma dimensão do amor
- Nova (des)ordem internacional
- Era refugiado e acolheste-me
- A família, primeiro educador
- Guerra e Paz
- O desafio das migrações
- Cidadania Ativa
- Caminhar juntos
- “Nuova Global” uma rede das “Cidade Nova”