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Justiça e paz em África

Vamos conhecendo melhor o drama que se vive em Cabo Delgado, com milhares de mortos e centenas de milhar de deslocados. Ainda assim, não podemos deixar de concluir que a atenção que governantes e cidadãos de países mais desenvolvidos, geralmente, dedicam às tragédias que assolam a África não se compara com o que sucede quando atentados terroristas ou catástrofes atingem esses países. Assim, por exemplo, no que se refere a epidemias que atingem África e são tão, ou mais, mortíferas do que a pandemia do coronavírus.

Mas também é importante não alimentar a imagem de que a África é apenas local de tragédias e atrocidades. Num encontro virtual em que participei, D. Luíz Lisboa, então bispo de Pemba, antes de falar da guerra em Cabo Delgado, falou do que todas as pessoas devem aprender com o povo e a cultura dessa região: a valorização dos mais velhos, a sede de Deus que leva à participação ativa e interessada em celebrações litúrgicas de várias horas e a generosidade das famílias pobres, que têm acolhido a maioria dos deslocados.

As causas da insurreição terrorista que desde há alguns anos surgiu em Cabo Delgado são complexas e ainda não inteiramente esclarecidas.

Não podemos negar que os atentados são reivindicados em nome de um autoproclamado “Estado Islâmico”, expoente do extremismo jihadista. Não deve, porém, atribuir-se a essa insurreição uma motivação religiosa (será, antes, ideológica), como se estivessem em oposição cristãos e muçulmanos.  Quem conhece a região, atesta uma tradição de convivência harmoniosa entre uns e outros. Por outro lado, são alvos de ataques igrejas, mas também mesquitas, estas por não seguirem a linha extremista e violenta dos insurretos.

Referem os bispos moçambicanos, numa sua declaração de 16 de abril, que «por detrás deste conflito há interesses de vária natureza e origem, nomeadamente de certos grupos de se apoderarem da nação e dos seus recursos. Recursos que, em lugar de serem postos ao serviço das comunidades locais e se tornarem fonte de sustento e de desenvolvimento, com a construção de infraestruturas, serviços básicos, oportunidade de trabalho, são subtraídos, na total falta de transparência, alimentando a revolta e o rancor, particularmente no coração dos jovens, e tornando-se fonte de descontentamento, de divisão e de luto».

Na verdade, as zonas atingidas são ricas em recursos naturais inexplorados e o seu despovoamento favoreceria tal exploração.

E alertam também os bispos moçambicanos, nessa declaração, para um motivo que pode levar os jovens a aderir a esses grupos terroristas: «Para a maioria deles não há oportunidades de se construir uma vida digna. Sentem que a sociedade e quem toma as decisões ignoram o seu sofrimento e não escutam a sua voz. É fácil aliciar pessoas, cheias de vida e de sonhos, mas sem perspetivas e que se sentem injustiçadas e vítimas de uma cultura de corrupção, a aderirem a propostas de uma nova ordem social imposta com a violência ou a seguir ilusões de fácil enriquecimento que conduzem à ruína».

Tal motivo não justifica o terrorismo (afirmam também com clareza os bispos moçambicanos), nem a ele conduz necessariamente, mas facilita a adesão a esses grupos e é aproveitado pelos seus dirigentes.

Por isso, a solução para esta tragédia que vitima as populações de Cabo Delgado não é apenas, nem sobretudo, militar. Porque a verdadeira paz não é só a ausência de guerra, é fruto da justiça.

> Artigo publicado na Revista Cidade Nova de junho de 2021