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Era refugiado e acolheste-me

As notícias que agora nos chegam todos os dias revelam bem a ambivalência da natureza humana, o que de pior e de melhor são capazes os seres humanos. Vemos bombardeamentos de maternidades e de teatros cheios de crianças e uma cidade deliberadamente destruída e com os seus habitantes intencionalmente privados de alimentos e água canalizada. A guerra provoca a deslocação de milhões de refugiados. Ao mesmo tempo, esse êxodo sem paralelo nos tempos mais próximos suscita uma espontânea mobilização solidária que surpreende e nos deixa maravilhados.

Há quem se desloque por milhares de quilómetros para resgatar pessoas que não conhece, apenas porque sente como seu o sofrimento dessas pessoas. Não o faz porque pretenda receber algo em troca (nem sequer um agradecimento), nem porque a isso alguém o tenha obrigado. O mesmo acontece com quem abre as portas da sua casa para acolher esses refugiados e quem se oferece como voluntário para todo o tipo de ajudas (desde oferta de bens a lições de português ou jogos e passeios com crianças). A sociedade civil e as autoridades políticas locais e centrais cooperam num esforço de acolhimento, sem reservas e sem medo de que a tarefa possa vir a revelar-se superior às forças disponíveis.

Recordo-me, a este propósito, do que disse um dia Chiara Lubich: o ser humano, porque criado à imagem de Deus que é Amor, realiza-se plenamente quando ama, quando dá. Por isso, vemos pessoas de muitas e diferentes convicções, religiosas ou não, empenhadas nesta mobilização solidária, que representa uma forma de doação livre, autêntica e desinteressada. Não é verdade que as pessoas só se mobilizem em ações que as beneficiem individualmente, nem que se empenhem em prol do bem comum apenas quando a tal são obrigadas.

Para os cristãos, esta doação ganha outra dimensão: Jesus, Deus feito Homem, considera feito a Si o que for feito aos mais vulneráveis e sofredores dos seres humanos («tive fome e deste-Me de comer, tive sede e deste-Me de beber», …, o mesmo é dizer: «era refugiado e acolheste-Me»).

A beleza deste quadro não apaga, porém, as trágicas imagens de violência, destruição e morte associadas à guerra. É um outro lado da natureza humana decaída, que nos leva a acreditar que a vitória definitiva sobre o Mal depende de Deus e está para além das nossas forças humanas. Por isso, ganha sentido a oração nestes momentos.

Duas advertências parecem-me agora oportunas. Uma, a de que o acolhimento destes refugiados vai exigir continuidade e perseverança e não se compadece com entusiasmos passageiros. Não podemos esmorecer quando o sofrimento destas pessoas deixar de ser tão visível e comovente e quando se forem acumulando outras dificuldades.

Outra, a de que não podemos esquecer outros refugiados, presentes no nosso país e noutros países mais distantes. Deles não nos chegam imagens e notícias como as que nos chegam da Ucrânia, mas a tragédia que vivem não é menor. Basta pensar, por exemplo, nos refugiados que estão na região de Cabo Delgado, que se viram forçados a deixar as suas casas e testemunharam indizíveis atrocidades e que continuam a aguardar melhores dias em campos e em condições infra-humanas. No momento em que escrevo, o número desses refugiados continua a aumentar. Será outra a forma de os ajudar, mas não podem, de modo algum, ser esquecidos.

> Artigo publicado na Revista Cidade Nova  de maio de 2022