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Continuamos todos no mesmo barco

No momento em que escrevo, prevalece, entre nós, um sentimento de desilusão perante o aumento de número de casos confirmados de infeção pela Covid-19. Há um sério receio de que esse aumento se reflita numa imagem negativa do país, que impeça o tão desejado afluxo de turistas a que estávamos habituados em anos anteriores. Perspetiva-se, assim, uma ainda mais difícil recuperação da crise económica e social que é consequência das medidas restritivas de combate à pandemia.

É compreensível que, à medida que se vão sentindo mais dramaticamente os efeitos dessa crise, se multipliquem as vozes de quem questiona a razoabilidade dessas medidas restritivas, se elas terão sido mesmo necessárias e adequadas. Li até um artigo que comparava o custo económico da crise com o valor das vidas que se salvaram, aferido pelo montante das indemnizações fixadas pelos tribunais como indemnização pela perda do direito à vida (concluindo que este era bastante inferior àquele). É claro que tal contabilização não tem qualquer sentido, porque essas indemnizações são apenas uma compensação pela perda desse bem, nunca um preço: nenhuma vida tem preço. É bom não esquecer nunca que o valor da vida humana é um valor supremo e, por isso, não merece contestação que tenha sido esse princípio a guiar as opções tomadas, mesmo que se possa discutir, em concreto, a oportunidade de uma ou outra dessas medidas. Governos que fizeram outras opções, como o da Suécia, reconhecem hoje que erraram e que muitas vidas poderiam ter sido salvas se aí fossem tomadas medidas mais restritivas.

A situação a que assistimos hoje, também revela que a proteção da saúde e a economia estão interligadas e não são antagónicas. É o facto de a situação sanitária do país não melhorar como se esperava que está a servir de travão à recuperação económica, pelo menos no que ao turismo diz respeito.

Também se diz, por outro lado, que não podemos eliminar da vida social o risco de contrair doenças, ou de que ocorram acidentes. É verdade que não paralisamos a economia, mesmo que essa paralisação evite acidente mortais, de viação ou de trabalho. Mas há que encontrar formas de minimizar tal risco para que ele seja ética e socialmente aceitável. Para isso, há regras (rodoviárias e de segurança no trabalho) que, se forem cumpridas, tornam tal risco aceitável. São regras desse tipo que há que formular e cumprir a respeito da Covid-19, regras que se irão consolidando à medida que se conhecer melhor a doença e o modo da sua difusão.

Há quem diga, também, que as pessoas são livres de correr os riscos que quiserem. Invoca-se, também neste âmbito, o valor supremo da autonomia individual. Mas, neste como noutros âmbitos, a autonomia individual não pode ser absoluta, porque nenhuma pessoa é uma ilha isolada. Quem assume o risco de ser infetado pelo coronavírus, desobedecendo às regras que impedem a difusão da doença, não se prejudica apenas a si próprio, pois desse modo poderá contribuir para contaminar outras pessoas. Até, sem disso ter consciência, por ser assintomático, pode estar a contaminá-las nessa altura e pode ser infetado, também sem disso se aperceber, vindo a contaminar outras pessoas mais tarde. 

Em suma, para este feito vale também a imagem usada pelo Papa Francisco e muitas vezes evocada a propósito do combate a esta pandemia: «Estamos todos no mesmo barco e ninguém se salva sozinho».

> Artigo publicado na Revista Cidade Nova de agosto/setembro de 2020