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A droga e a liberdade

É de esperar que venham a ser de novo discutidos na legislatura, que agora se inicia, projetos de legalização do cultivo, posse e venda de canábis para uso pessoal (dito “recreativo”). 

São conhecidos os argumentos a favor dessa legalização, que também são invocados no sentido da legaliza- ção das drogas em geral. Um desses argumentos tem a ver com um princípio de respeito pela autonomia individual: «sobre si próprio e sobre o seu corpo, o indivíduo é soberano» – esta célebre frase do filósofo Stuart Mill é com frequência evocada a propósito desta questão. 

Mas não tem sentido invocar a liberdade para a comprometer e destruir. Na verdade, talvez o maior malefício das drogas seja o de criar uma dependência escravizante. Disse São João Paulo II a 23 de novembro de 1991: «drogar-se, pelo contrário, é sempre ilícito, porque implica uma renúncia injustificada e irracional a pensar, querer e agir como pessoas livres». 

Por outro lado, nenhuma pessoa é uma ilha isolada. Os danos provoca- dos pelo consumo de estupefacientes não têm uma repercussão simples- mente individual, pois assumem um relevo social; é a saúde pública que está em jogo. É por isso que qualquer governo adota políticas que procuram contrariar o consumo de drogas. Outros argumentos em favor da legalização do consumo e venda de estupefacientes são de ordem pragmática. Não ignoram os malefícios desse consumo (mesmo o da canábis, que cada vez mais se sabe estar longe de ser inócuo e que, nalguns casos, pode induzir graves psicoses). O que se alega é que o proibicionismo falhou, não elimina o consumo e gera um mercado negro dominado por organizações criminosas. A legalização permitirá controlar esse consumo e limitar os seus danos.


No entanto, se é ilusório pensar que com a simples punição se alcança uma sociedade livre de drogas, é ainda mais ilusório pensar que a sua legalização não contribuirá para incrementar o seu consumo (que é sempre danoso, seja legal ou clandestino). Isso seria contrário à lógica que subjaz a qualquer política legislativa. Desde logo porque o sinal que é dado por tal legalização (a lei tem, antes de tudo, um papel pedagógico, ou anti- pedagógico) será interpretado como de indiferença perante os malefícios desse consumo. É o que também revela a experiência dos Estados que seguiram essa via, nos quais crescem exponencialmente as empresas lucrativas dedicadas ao novo negócio legal. Sem que desapareça o mercado clandestino que tem vantagens em relação ao mercado legal, não está sujeito às suas limitações, nem a obrigações fiscais. 

É verdade que o combate à droga não pode assentar apenas, ou basicamente, na punição (sendo que esta permite conter o fenómeno). Uma sociedade livre de drogas depende, sobretudo, de outros fatores, de ordem espiritual, educacional e social. 

Nesta linha, afirmou o Papa Francisco em 20 de junho de 2014: «Gostaria de dizer muito claramente: a droga não se vence com a droga! A droga é um mal, e como mal não nos podemos dar por vencidos nem ceder a compromissos. Pensar que se pode limitar o dano, permitindo o uso de psicofármacos àquelas pessoas que continuam a usar droga, não resolve minimamente o problema. As legalizações das chamadas “drogas leves”, até parciais, além de serem discutíveis a nível legislativo, não produzem os efeitos estabelecidos. Depois, as drogas substitutivas não são uma tera- pia suficiente, mas um modo velado de se render ao fenómeno. Pretendo reafirmar quanto já foi dito noutra ocasião: não a qualquer tipo de droga. Simplesmente. Não a qualquer tipo de droga. Mas para dizer este não, é preciso dizer sim à vida, sim ao amor, sim aos outros, sim à educação, sim ao desporto, sim ao trabalho, sim a mais oportunidades de trabalho.»

> Artigo publicado na Revista Cidade Nova de fevereiro de 2020