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O legado de Bento XVI

Terminou a vida terrena do Papa emérito Bento XVI. Provavelmente os livros de História virão a recordá-lo como o Papa que, pela primeira vez, renunciou ao exercício do seu múnus por não se sentir capacitado para tal. Mas pouca justiça se fará a este Papa, se ele vier a ser recordado apenas, ou sobretudo, por tal facto.

Deverá ser recordado, sobretudo, pela riqueza e profundidade do seu pensamento teológico, um dos mais marcantes das últimas décadas.

Nesse âmbito, é de salientar a sua primeira encíclica, Deus Caritas Est. Quando uma grande parte da comunicação social ainda o apresentava com a veste negativa resultante da sua anterior missão de condenação de erros doutrinais como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (missão espinhosa, mas necessária, porém), eis que essa sua primeira encíclica vem salientar, pela positiva, a verdadeira “boa nova” cristã: o anúncio do amor de Deus.

«“Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele” (1 Jo 4, 16). Estas palavras da I Carta de João exprimem, com singular clareza, o centro da fé cristã: a imagem cristã de Deus e também a consequente imagem do homem e do seu caminho. Além disso, no mesmo versículo, João oferece-nos, por assim dizer, uma fórmula sintética da existência cristã: “Nós conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem”» – são estas as primeiras palavras dessa encíclica. Do amor de Deus nasce o amor ao próximo no sentido indicado por Jesus, que consiste «no facto de que eu amo, em Deus e com Deus, a pessoa que não me agrada ou que nem conheço sequer»; vejo-a «já não só com os meus olhos e sentimentos, mas segundo a perspetiva de Jesus Cristo» (n. 18). Este amor está na base da coesão social. Certamente pressupõe a justiça, mas «será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa», além do mais porque sempre «haverá sofrimento, que necessita de consolação e ajuda»; haverá «sempre solidão» (n. 38).

Em continuidade com essa mensagem, uma outra encíclica de Bento XVI, a Caritas in Veritate, aprofunda essa mesma ideia da fecundidade social do amor. Nela se proclama, também logo no seu início: «A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira. O amor – “caritas” – é uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz». A caridade não pode conceber-se sem a verdade. Esta «é luz que dá sentido e valor à caridade», sem ela esta «cai no sentimentalismo» e torna-se «um invólucro vazio, que pode encher-se arbitrariamente» (n. 3).

Ao abordar mais especificamente questões socioeconómicas, esta encíclica Caritas in Veritate afirma: «O grande desafio que temos diante de nós (…) é mostrar (…) que não só não podem ser transcurados ou atenuados os princípios tradicionais da ética social, como a transparência, a honestidade e a responsabilidade, mas também que, nas relações comerciais, o princípio de gratuidade e a lógica do dom como expressão da fraternidade podem e devem encontrar lugar dentro da atividade económica normal (n. 38). É, precisamente, a esta exigência que procura responder o projeto da Economia de Comunhão, que a nossa revista tem divulgado.

Não pretendo com estas breves referências sintetizar a riqueza do pensamento teológico de Bento XVI. Mas dar apenas algum vislumbre da lucidez desse pensamento, que para sempre permanecerá como um precioso legado que ele deixa à Igreja e à humanidade.

> Artigo publicado no editorial da Revista Cidade Nova  de fevereiro de 2023