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Nova (des)ordem internacional

A invasão da Ucrânia veio alterar completamente as perspetivas da ordem geopolítica internacional do futuro mais próximo. Uma guerra como esta, na Europa, e envolvendo direta ou indiretamente grandes potências, parecia inconcebível até há pouco tempo. As perspetivas que se avizinham são a de uma maior probabilidade de conflitos bélicos e do reforço ainda maior das despesas militares. Os horizontes de paz parecem mais longínquos.

Ao mesmo tempo, muitos (desde o Papa Francisco ao secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres) têm salientado como uma guerra como esta no século XXI é um verdadeiro anacronismo, algo que pertence a outros tempos da História, que representa uma regressão civilizacional, como se nada tivéssemos aprendido das tragédias do passado.

Precisamente para seguir as lições da história e evitar as tragédias do passado, surgiram depois da II Guerra Mundial instituições como as Nações Unidas e a União Europeia. Apesar da divisão do mundo em blocos ideológicos contrapostos, essas tragédias não se repetiram, mesmo num contexto de “guerra fria” e de uma ausência de guerra assente na dissuasão nuclear mútua.

Depois do fim dessa divisão, com a queda do muro de Berlim, houve quem vaticinasse uma nova era de paz e prosperidade com o fim das lutas ideológicas num consenso generalizado em torno dos valores dos direitos humanos, da democracia e da economia de mercado (a famosa tese do “fim da História” de Francis Fukuyama). Esse consenso seria favorecido com o incrementar dos laços de interdependência económica, do comércio como benéfica alternativa à guerra.

Só em parte essa alternativa se verificou, como agora se vê neste conflito que envolve, de um lado, a Rússia e, de outro, o chamado Ocidente. Daí que se evoque agora outra tese alternativa à do “fim da História”, a do “conflito de civilizações” (pugnada por Samuel Huntington), que aponta como marca característica das divisões geopolíticas do futuro já não as ideologias, mas as culturas a que estão associadas visões contrastantes das relações entre a pessoa e a comunidade (visões que opõem a cultura ocidental à da Rússia, como à da China ou à do mundo islâmico).

Mas, contra esta tese, também há quem fale em “aliança de civilizações” e quem saliente que estas não são estáticas e podem englobar valores universais que estão para além delas, como os dos direitos humanos, da paz e da fraternidade universal.

É só por esta via que pode surgir uma nova ordem internacional que não seja a repetição do cenário que deu origem a duas guerras mundiais no século passado (que não seja o prenúncio de uma terceira). Tal poderá supor mudanças (pacíficas) de regimes atualmente vigentes, as quais exigem tempo e perseverança. Vem a propósito relembrar o que se passou com os regimes comunistas e a que se referiu São João Paulo II na sua encíclica Centesimus Annus (n. 23):

«Parecia que a configuração europeia, saída da II Guerra Mundial e consagrada no Tratado de Ialta, só poderia ser abalada por outra guerra. Pelo contrário, foi superada pelo empenho não violento de homens que sempre se recusaram a ceder ao poder da força, e, ao mesmo tempo, souberam encontrar aqui e ali formas eficazes para dar testemunho da verdade».

> Artigo publicado na Revista Cidade Nova  de junho de 2022