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Um Deus que se fez menino

Quando, ainda há pouco tempo, se evocou por todo o mundo o legado da rainha Isabel II, muitos recordaram as suas mensagens natalícias como um testemunho da sua fé cristã, simples e autêntico. A quadra natalícia é normalmente ocasião de reflexão sobre a mensagem que, para crentes e não crentes, pode ser colhida desse evento que, em muitas culturas, passou a dividir a história em duas eras: antes e depois de Cristo. Como seriam hoje as sociedades e culturas se Jesus não tivesse nascido? 

Muitas lições se podem colher ao refletirmos sobre esse acontecimento sem paralelo de um Deus que, na sua omnipotência, se torna menino, como o mais vulnerável e indefeso dos seres humanos. A exaltação suprema da força e do poder que caracterizava as culturas da Antiguidade deu lugar, com o cristianismo, ao respeito pelos mais fracos, pelos pobres e pelos doentes, com os quais Deus se identificou quando se fez Homem, desde logo ao nascer numa gruta em Belém. E quando disse. «Sempre que fizeste isto a um destes irmãos mais pequenos, a Mim mesmo o fizeste» (Mt, 25, 40). À medida que cresceu a influência do cristianismo, deixaram de ser correntes práticas como o aborto, o infanticídio ou o abandono de crianças à nascença, em especial quando portadoras de alguma deficiência.

Esta mensagem de valorização da dignidade das crianças, como das pessoas mais vulneráveis em geral, é uma das mais relevantes mensagens que nos traz o Natal. Uma mensagem tão atual hoje, como há dois mil anos. Assistimos hoje, à sistemática supressão da vida pré-natal com a colaboração ativa de governos. Perante a indiferença de muitos, num mundo onde os recursos nunca foram tão abundantes, as crianças continuam a ser das maiores vítimas da fome e da guerra.

Outra chaga de que são vítimas as crianças e de que hoje muito se fala (em larga escala silenciada no passado) é a dos abusos sexuais. Particularmente chocante são as situações em que tais abusos ocorrem em ambientes da Igreja. De nada serve ignorar ou ocultar esses tão flagrantes contra-testemunhos, que contradizem profundamente a mensagem cristã. Também neste aspeto, o cristianismo contribuiu para abolir a aceitação generalizada que, na Antiguidade, tinham práticas de abuso sexual de crianças e adolescentes. 

É claro que tais contra-testemunhos levam a que, para muitos, se torne pouco credível a mensagem que hoje continua a ser proclamada pela Igreja, também no que diz respeito à ética sexual. Mas não deixa de ser verdade que os abusos sexuais de crianças e adolescentes são uma expressão extrema duma mentalidade hoje corrente que, contra a ética sexual cristã e personalista, favorece a busca do prazer sexual sem regras e com instrumentalização da pessoa, reduzida a objeto. Esta é uma verdade que tem sido ignorada quando se aborda esta questão.

Reconhecer os erros dos filhos da Igreja neste âmbito é um dever de verdade, de justiça e de humildade. Mas o dever de verdade e de justiça também nos leva a reconhecer o bem que, em prol da infância e da juventude, é praticado em todo o mundo por outros filhos da Igreja. Penso, por exemplo, nos missionários que não abandonam as crianças que hoje em Moçambique têm sido vítimas do terrorismo, a quem dedicaram a sua vida, dispostos até a perdê-la literalmente (como já sucedeu).

É esta, assim, a única forma de, hoje talvez mais do que nunca, credibilizar a mensagem cristã: seguir esses exemplos positivos, testemunhar com os factos as palavras de Jesus sobre o amor aos mais pequenos e vulneráveis: «Sempre que fizeste isto a um destes irmãos mais pequenos, a Mim mesmo o fizeste» (Mt, 25, 40).  

> Artigo publicado no editorial da Revista Cidade Nova  de dezembro de 2022