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Lidar com o passado

O discurso do Presidente da República nas comemorações do 25 de abril foi aplaudido e elogiado por pessoas de muitos quadrantes políticos. Houve mesmo quem o considerasse o melhor dos discursos presidenciais até hoje pronunciados numa ocasião como essa. A sua atualidade certamente permanecerá por muito tempo.

Abordou este discurso a questão dos juízos sobre o nosso passado como nação, em especial no que se refere ao passado colonial. É um tema que hoje divide profundamente as sociedades ocidentais, que assistem a derrubes e danificações de estátuas e monumentos e a reações indignadas a tais ações. Este discurso salientou alguns princípios que podem ajudar a superar feridas e divisões.

Salientou, desde logo, que «há no olhar de hoje uma densidade personalista, isto é, de respeito da dignidade da pessoa humana e dos seus direitos, na condenação da escravatura e do esclavagismo, na recusa do racismo e das demais xenofobias que se foi apurando e enriquecendo, representando um avanço cultural e civilizacional irreversível.»

Mas há que «julgar o passado com os olhos de hoje, sem exigir, nalgumas situações, aos que viveram esse passado que pudessem antecipar valores ou o seu entendimento, para nós agora tidos por evidentes, intemporais e universais, sobretudo se não adotados nas sociedades mais avançadas de então».

A oscilação de juízos contraditórios sobre o passado não é só de hoje: basta recordar os livros escolares de história do Estado Novo em contraste com os do período revolucionário que se seguiu ao 25 de abril. A este respeito, dois erros são denunciados neste discurso. Há que evitar passar de «um culto acrítico triunfalista exclusivamente glorioso da nossa história, para uma demolição global e igualmente acrítica de toda ela, mesmo a que a vários títulos é sublinhada noutras latitudes e longitudes». «É prioritário estudar o passado e nele dissecar tudo: o que houve de bom e o que houve de mau. É prioritário assumir tudo, todo esse passado, sem autojustificações ou autocontemplações globais indevidas, nem autoflagelações globais excessivas». 

No que ao desfecho do Império colonial português diz respeito, o discurso acentua que não devem ser ignoradas as perspetivas e sofrimentos de todos: «os que serviram pelas armas o que entendiam ou lhes faziam entender constituir o interesse nacional»; os que, do outro lado, se bateram «pelas suas causas nacionais»; os que «chegaram rigorosamente sem nada, depois de terem projetado uma vida que era ou se tornou impossível»; «os que sofreram nas suas novas Pátrias conflitos internos, herdados da colonização ou dos termos da descolonização».

Valerá a pena recordar o que, a propósito de conflitos históricos entre povos e culturas, dizia São João Paulo II sobre a purificação da memória. Este Papa, que enalteceu sempre as glórias e riquezas do legado histórico cristão dos vários países (geralmente ligado aos santos), também quis assumir, pedindo perdão, os erros, infidelidades e contra-testemunhos dos filhos da Igreja, ao longo da história (a Inquisição, entre muitos outros).

Saber lidar deste modo com o passado não é questão que interesse apenas aos historiadores. É um precioso auxílio para a reconciliação e a unidade entre a variedade de povos e culturas que convivem nas sociedades e no mundo globalizado de hoje e que transportam consigo as marcas de um passado de sofrimentos e conflitos.

> Artigo publicado na Revista Cidade Nova de julho de 2021